Wednesday, October 31, 2007

Αρχιμιδις

Querida mana:

Por vezes perco o sentido das coisas, um pouco como o velho do deserto, a figura que contemplei certo dia, enquanto me arrastava entre a solidão. O velho era carrancudo, the vestes temperadas em poeira de séculos, a barba a brotar em espirais de raiz seca. A pele amontoava-se sem regra, num desenho antitético de vales profundos e cumes diversos. Segurava na mão direita um livro de páginas amarelecidas que soltavam pó somente com o respirar ofegante que lhe cansava. E aquele olhar mana, como se das páginas do livro retirasse toda a confirmação para o estado em que se encontrava, um desvanecimento profundo que me causou vertigens.
O pescoço contorceu-se aquando da percepção da minha presença. Eu, um vagamundo de pele areada, cansado de percorrer infinidades, rendi-me ao conforto da poeira e sentei-me, ao seu lado, saciando o meu desejo de companhia. Faz tempo que não converso mana, e no meu corpo já não cabe nem mais uma palavra.

Ali repousei a solidão. Em palavras trocadas de mão para mão...

Quando decidi voltar à minha condição de vagamundo, o velho arrancou uma página do seu livro e estendeu-a para mim. Nela estava escrita apenas uma frase que reescrevo aqui, na esperança que a consigas perceber:

"Sou o medo e o temor do menino vadio..."

Do teu, para sempre, irmão.

Sunday, September 9, 2007

Na estrada para lugar nenhum...

Querida mana:

Perdoa-me a ausência. Fugi de mim. É uma necessidade que me assola a alma, aquando da chegada de uma amálgama de emoções. Tu compreendes mana, não sou o único ser no qual este instincto força em poisar, não sou único, apenas o faço à minha maneira.
Parei para me olhar, como já não o fazia à muito tempo, no reflexo de uma vidraça. Uma réstea de lembrança do que já fora outrora a casa de alguém. Abandonada foi, porque em quem ela pertencia, deixou-se cair um nevoeiro ensurdecedor, um chamamento para lugar nenhum.
Olhei como já não fazia à tanto tempo mana, para os contornos da minha face e não resisti a chorar. Sabes que já fui menino, mana? Sabes que era ontem menino e hoje sou homem de rosto marcado? Poderás tu afagar um rosto, miudo por dentro e velho por fora?
Há mudanças que não podem ser aceites sem que mude o universo em que dormimos, são mudanças pesadas capazes apenas de ser suportadas em lugar nenhum, que não este. Foi assim que me assolou esse instinto de que te falei. Não o segui olhando as estrelas, não o segui sentindo o cheiro, segui-o para fora de mim. Migrei para fora do meu corpo, porque este corpo velho mana, já não me cabe.

A fossa alarga-se mana, para me entenderes terás também que perceber o que sinto.

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Do teu, para sempre, irmão.

Wednesday, August 1, 2007

Aos imortais...

Querida mana:

Hoje, por entre a poeira surgiram 4 vultos, perdidos na fumaça de cigarros, vestidos com fardas militares. Dois deles, ao invés de caminharem, arrastavam os seus corpos completamente desfigurados. Outros dois seguiam atrás em passos sem destino. Um deles reparou na atenção que depositei sobre eles, soltou um sorriso sarcástico, sujo pela fumaça do cigarro, e continuou. Eram o resultado de mais uma guerra sem sentido.
Às vezes acho que um soldado acaba por nunca sobreviver. Pode regressar ileso é certo, mas guarda sempre uma última granada para explodir a todo o momento. No seu interior as partículas viciaram-se nos estrondos e chocam entre si violentamente, os tímpanos ressoam constantemente sons de balas e o próprio coração vicia a sua bombagem ao som de rebentos de granadas. As mãos, essas tremem saudosas do peso da arma e os ombros erguem-se na memória dos camaradas que carregaram. Tudo isto quando, à volta, a guerra no seu sentido físico acabou. O mundo apático vai coçando novamente os problemas até fazer sangue e voltar a jorrar a guerra e nos entretantos, aqueles que por lá passaram simplesmente se vêm incapazes de viver ao ritmo de um mundo que esqueceu uma guerra como se ela não tivesse existido, que apresentou menções honrosas aos que morreram por lá e aos que se guardaram para morrer por cá, como pensos a tapar um braço dilacerado.
A verdade é que quando se vive demasiado tempo sobre um grande peso, a leveza torna-se num fardo ainda mais insustentável, antes uma guerra, hoje uma vida desprovida de sentido. A triste ironia dos imortais...

Poderá uma guerra, algum dia sarar?

Do teu, para sempre, irmão.

Friday, June 29, 2007

Νέμεσις

Querido mano:

"Tudo o que o pássaro quisera fora nadar, tudo o que o peixe desejara fora voar. Até ao dia em que ambos se aperceberam do quão tolos eles eram..."

Toda a gente viveu desenfreada, sobre banhos de raiva, na busca insaciável de uma vida de sonho. Todos procuraram o emprego de sonho, a casa de sonho, a pessoa ideal para ter ao seu lado, concentrados numa ignorância sem precedentes, ignorando, como sendo um facto alheio aos seus propósitos desmesurados, que a vida não se resumia a uma escadaria de sucessos por excelência. Encheram bem as barrigas com futuros variados, capazes de conter uma enciclopédia de sucessos profissionais e pessoais que os levassem à perfeição, ignorando o facto mais comprovado de que a humanidade jamais seria perfeita. Assim se alimentaram uns dos outros até não restar nada no mundo, a não ser as barrigas inchadas de vergonha.
Tristes esses poetas que ingénuamente pensaram que cada instante da vida deveria ser rimado com o anterior e o próximo, construindo dessa forma a composição métrica ideal de que me falaste, para a continuação do tempo. Tristes poetas, esses que viveram para a ordem do tempo, que se esfolaram para alcançar a corrompida excelência quando o príncipio básico da vida sempre foi ser feliz.
Não são, no entanto, eles os culpados do efeito causado por tanto mal. Apesar de todo o meu empenho em te fazer crescer, em te proteger, em elevar-te a uma condição de felicidade digna dos deuses, visível por todos, vê o que construi com tudo isso. Apenas um deserto entre nós... É claro que o esforço não recompensado e a felicidade jamais caminharão unidos, e assim acabei castigado também.
Não caias tu no mesmo erro, não te rendas à excelência das mentes corrompidas e dá conta do perigo que se eleva acima da felicidade. Ele expõe-se no pior dos momentos, e tem em vista as piores represálias, por isso silencia as tuas emoções, mas não as cales, se queres que mundo se mantenha como é.

Todo este crime tende a subverter o desenvolvimento intelectual de uma espécie, e toda a sua capacidade evolutiva, e acabará por pôr em causa o (des)equilibrio universal que nos faz pender para fora da fossa. Afinal de contas a subversão não é o que se pretende quando todo o universo se expande. Conto contigo.

Da tua, para sempre, irmã.

Saturday, June 9, 2007

Arcangelo

Querida mana:

Não fosse outro pedaço de papel, e já teria perdido a esperança de voltar a ter uma carta tua...

"A morte é fria, dura, é injusta em toda a sua existência. Leva tanta coisa com ela sem qualquer direito a discussão, sem qualquer consciência de si mesma, sem qualquer sinal de humanidade. É isso que me dói, é eu poder erguer o próprio mundo em que vivo, sem nunca o poder colocar intangível à morte. Que medo me dá por tamanha incompreensão, tamanha indiferença ao que carrega um coração...
Assim cai esta chuva, sem qualquer calor, apoiada na tua ausência que me consome, esta chuva que não é mais do que o meu próprio sangue a escorrer por entre as ranhuras do caminho que nos leva direito ao esperado. Que medo que sinto desta água que me inunda de um fado que não aceito mas que ainda assim insiste em colocar todos os que carrego a viver sobre um mesmo fim. Como me livro desta chuva se nada nos cobre no final, se para onde tendemos é para um deserto sem céu onde tudo nos cai sem qualquer conforto, sem qualquer consciência de peso, sem qualquer respeito por tudo o que sentimos dentro de nós. É essa imortalidade a maior das injustiças, não podermos condenar a morte à sua própria morte.
E assim a chuva cai e leva-te sem ter em consideração a ligação que nos une, deixando em mim a maior das cicatrizes a cobrir a maior das feridas...
Não sei onde estou, desembaraço-me agora destes pensamentos à medida que ganho consciência do espaço. À volta uma multidão urge, ao longe um clarão de luz me confunde os pensamentos, um alguém me mostra a palma da mão a receber toda a chuva vermelha que se me escorre. Em tom de pauta me diz: "Red rain is pouring down... Come il Peter Gabriel sta cantando!!"
Gabriel?"

Do teu, para sempre, irmão

Friday, June 1, 2007

Só o teu amor é tão real...

Querida mana:

E acabaste mesmo por chegar até mim novamente, nesse murmúrio que incrustaste no relevo da carta que me enviaste. Cedo percebi, nos tempos em que brincávamos juntos, que tu sempre gostaste de me contar segredos entre as linhas do tempo, deveria ter recorrido mais cedo, então, a essas lembranças. Porque são tão cheias de ti... me acalentam no vazio.
Embalas todo o teu amor em murmúrios e o sujeitas a tanta distância, sabes que as palavras banais não têm espaço para trazer com elas seja o que for, a não ser que se aliem, que se cosam em fileiras de esperança e que dessa maneira tragam com elas o mundo inteiro. Num único deslumbre dizes tanta coisa e escondes tantas outras coisas mais, e assim reúnes a composição métrica ideal para a continuação do tempo.

Vai-e-vem a poeira no deserto, vão e vêm uma infinidade de oásis, mas só o teu amor é tão real.
De tudo o que vejo em meu redor, perdido no deserto, apenas tu não és uma visão que me trai os sentidos, tudo o resto se desvanece ao fim de algum tempo, tudo o resto não é mais que poeira que tarda tanto em acentar, deixando-me a vista nublada e os sentidos sem norte. Solidão, essa quentura que me suga a água do corpo, sinto-a na garganta que nada mais faz do que cuspir terra, sinto-a na pele, e nos joelhos, que cedem ao cântico da fraqueza, assim como todo o corpo num desmaio profundo. É contigo que sonho. Com tudo o que já fomos juntos, com tudo o que ainda conto ser contigo, com tudo o que ainda está para vir e que nunca virá. Silêncio, é tudo o que me resta, e esse teu amor que de tão só, é tão real...
Que mundo permite, que se crie entre ele, uma extensão tão vasta de deserto, que desinspiração se desenvolveu nos gases da atmosfera e que priva o solo de toda a riqueza que nos ensina a crescer? Falas entre as linhas do tempo, felizmente, só assim as verdadeiras palavras passam por essa nuvem de indiferença, e se escapam da condenação à escuridão do resto do universo, só assim me vejo capaz de ouvir esta voz dentro de mim:

"Gritar quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim
Gostava até de matar-me,
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim..."

Agora sei que há muito tempo que cantava para mim. Do murmúrio senti o teu apelo e o guardei a sete chaves. A voz que cantou dentro de mim revelou-me o teu segredo e me abriu todo um novo horizonte de esperança...

Do teu, para sempre, irmão

Saturday, May 26, 2007

Love Letter

Querida mana:

"Porque caem edifícios sobre mim, mundos, e eu não me contenho, e vens tu vestida nesse sorriso e me pesas tanto que me detenho? Serás feita da pedra que me contorce ou és a única leveza para a qual não consigo sustento, um sinal de fraqueza, um sinal de humanidade"

É um excerto do que me parece até ao momento uma carta, que encontrei no deserto . Sim mana, decidi sair do telhado e me render à terra. Essa terra suja de vergonha por todo o mal que consentiu. Foi sobre a imensidão do deserto que me deparei com um pedaço de papel, queimado com o tempo. O pedaço, para meu desgosto encontrava-se rasgado, e continha apenas mais algumas palavras:

"Quando me procuras e eu me escondo em segredos não te fujo, protejo-te de mim. Acho que ao me ver capaz de tanta coisa, sinto que o mundo à minha volta se torna mais frágil, quebradiço. E eu não quero que partas... "

O papel era do género timbrado e repetiam-se as iniciais "LL" como fundo, em todo o texto. Mana, achas que estou a ler uma carta de amor? Haverá ainda alguma sobra de amor? Impossível neste mundo, tudo foi consumido pelo degelo intelectual que inundou todas as vontades, para depois se retirar, deixando este solo seco sem raízes capazes de criar. Como poderia sobreviver um amor num deserto árido, onde toda a nossa pele assa no vento, e todo o nosso ser se transpira? Qualquer que fosse o amor, estou seguro que seria eterno...

Do teu, para sempre irmão.

PS: Não te preocupes mana. não me distraí do meu propósito, a minha ânsia de encontrar a mãe continua bem viva. Apenas acho que é sempre bom ouvir uma história de amor sobre a imensidão de um deserto. É um sinal de esperança. Seria óptimo encontrar os pedaços que faltam... Continuo a aguardar uma nova carta tua.

Thursday, April 26, 2007

A cor IG

Lisboa 26 de Abril de 2007

Querida mana:

Cedo se amedronta uma vida no desgaste de uma ausência, cedo o tempo se encurta aos nossos olhos. Livro-me assim de uma luta como espada rendida à terra, como coragem que vira lebre, como esperança febril que tão cedo me embala e me traz o dia em que serei derrotado.
Não consigo sair do teu enredo, às vezes penso que, nele, ficarei para sempre perdido. Não consegui perceber do que me querias alertar na tua carta sem assunto. Procurei ajuda noutros telhados, outras essências que anseio que se revejam na tua e me deslumbrem com algo mais do que este silêncio surdescente. Cedo me rendo à seniscência, essa coisa perversa que nos mata em segredo, em cada instante de tempo.

Lá em baixo vozes se agitam. Distingo 2 homens vencidos pelo tempo em acesa discussão. Um deles mal se levanta, toda a sua força é empregue para levantar um braço onde se lhe pesa uma borboleta. O que aconteceu à leveza das borboletas, mana? Ao pescoço traz, como qualquer degéniorado, o seu código de identificação: lBntzozykB. O velho rastejante arrasta, ainda, com ele, uma dose de latas enferrujadas que enalam um cheiro a morte. Sim mana, consigo sentir o seu cheiro mesmo aqui no meu telhado. O velho parecia trazer consigo o fim.
O segundo participante na discussão fala por escarras que solta ruidosamente, para alívio da garganta. Parece indiferente à súplica do velho rastejante como se não passassem de silêncios, concentrando-se mais na sua voz de profeta. Parece prometer mundos e fundos e eu começo a sentir nele uma certa esperança. Fala com palavras nunca antes ditas, com certezas nunca antes postas em causa, com verdades absolutas. Fala em pintar as nossas vidas de uma cor que não existe... Entusiasmado solta palavras no vento, profetiza banhos de chuva que nos lavam a alma corpórea, essa alma que agora só se vale do seu peso e não da sua leveza.
Teria descido do telhado e abraçado a causa, não fosse a minha fixação na borboleta que pesava sobre a mão do velho rastejante. De onde vem o peso da borboleta?
Nas latas pinta-se a vermelho Zyklon. É mais um dos teus códigos, mana?
Zyklon é a palavra que designa ciclone em alemão. Borboleta e ciclone, os símbolos da teoria do caos. Porque insistes neles? Por onde me levas mana? Porque sofre o velho rastejante o efeito da borboleta, esse tufão sobre a sua alma que o faz chorar lágrimas ácidas?

No desespero da minha ânsia vejo a cor, aquela cor que não existe e que o figurante, do qual não se esgotam as escarras, insiste em promover. Dentro de mim, cresce um cheiro de cinza, um medo de assombro um vomito imenso. Aquela cor, era cor de morte. Entre o velho rastejante e o figurante heis que se ergue um muro que acaba na sua única entrada, onde se destaca em letras de ferro: "Arbeit macht frei ".
Não!....

Do teu, para sempre, irmão

Monday, April 23, 2007

Odem

Lisboa, 24 de Abril de 2007

Querido mano:

Quem nos promove neste mundo, nos retira o embalo e nos deixa desertos imensos por definir?
Dorme apenas no consolo da minha ausência, no varão de uma escada onde tropeçam segredos, no silêncio dos fracos que se fazem deuses. À noite revê as sombras, procura o enredo, descobre o enlace, espreita por detrás do pano.

Noite crua em que te deitas, que se embaraça na luz e se regozija na sombra da uma alma penosa. Comigo estarias seguro é certo, mas não é comigo que te encontras agora e nada posso fazer a não ser alertar-te. É segredo, aquilo que te deixo, que de tão sorrateiro se incumbe de ajudar aos mais lamentáveis desfechos, mas que nos antecipa finais. Meu irmão, olha em todas as direcções, revê todos os sentidos, anota todos os sinais, é pesado o fardo que te deixo mas é vital antecipares a queda do pano, para que te protejas dos assobios. Segredo, mantém-me em segredo...Mas não me forces ao esquecimento.
Se ao menos pudesse poupar-te do peso que te coloco sobre os ombros, se ao menos nos pudéssemos render à apatia de toda a gente, não me iludo e espero que tu também não. Insistirem na indiferença não lhes valeu de nada, acabaram como intelectos mortos, apodrecidos na cinza das estações. Lhes dirá o tempo, se a árvore volta a dar fruto. Digo não ao caminho, para que possas ser tu a tomar-lhe o rumo.

O tempo, no teu telhado, continua a ser marcado pelo alemão do 12º telhado? Edema generalizado esse que se acumula entre os instantes de tempo que insiste em marcar, e porque na sua graça, cada intervalo entre 2 instantes é maior que o intervalo anterior, o desgraçado acredita que tende para a imortalidade. Mora nesse telhado faz tempo e é o melhor dos exemplos dos que caíram na fossa intelectual. Comigo nunca falou. Mas talvez contigo o faça mesmo que não estejas com ele, mesmo que não o ouças, talvez na origem da sua indiferença involuntariamente permita que eu te segrede ao ouvido.
Só o facto de medir o tempo o torna vazio. O tempo rege-se numa progressão para o infinito, nunca permitirá que alguém o acompanhe eternamente. Edema generalizado esse que consome o contador do tempo que ainda assim traz com ele o meu aviso, em cada começo.

Da tua, para sempre, irmã

Sunday, April 22, 2007

Génese 22

Lisboa, 22 de Abril de 2007

Querida Mana:

Quando te vês ao espelho quem reconheces, o tufão ou a borboleta? A causa ou o efeito?

Só podes ser um tornado, com essa tua indiferença de quem se rege por leis egocêntricas, de quem consome tudo à sua volta e em espiral força tudo a servir o seu propósito interior. Nos últimos dias nada fiz, para além de esperar um regresso teu, ou talvez me bastasse uma resposta tua apenas. Acho que acalentei demasiadas esperanças no teu primeiro abraço e com esse dilúvio de esperança transbordou a revolta.
Perdoa-me, mas dói-me tanto não ter notícias tuas.
Porque não respondeste à minha carta? A mãe continua sem voltar e eu anseio as suas histórias. Onde estás tu?
Estou decidido a saltar do meu telhado, seguir as marcas que a mãe deixou, na sua descida até ao chão, estou convencido que só assim poderei ter notícias dela. Não percebo, então, o porquê do meu corpo não ceder à queda, o porquê desta ausência de peso.
O vento bate-me forte no corpo, gela-me a pele. É ele que me sustém, que me impede de cair do meu telhado e de me tornar mais uma pedra do chão. Podes imaginar o quão leve estou, para que seja o vento a minha única base de sustentação. Podes imaginar mana, o quão vazio me sinto. Sem o teu abraço é certo que vou acabar por voar, planar, é certo que serei a borboleta, que na sua leveza se recusa a cair.
Acabei de perder 21 gramas...
Debaixo do meu telhado, mais 22 telhados. A prova de que a queda seria eterna.
No telhado imediatamente abaixo, um homem padece da doença do ferro, mal se move. O corpo estático há muito que negou as leis do movimento. Os seus olhos, no entanto, deslumbram em todas as direcções, à procura de uma fé há muito esquecida, que o possa ajudar a contrariar o apodrecimento. Preso ao pescoço, apresenta um cartaz onde se diferencia um código de identificação: 918113 datado de 25121642. É um "degéniorado", rapidamente reconheço. A mãe aponta-os como génios que degeneraram em solidão aquando da percepção de que o mundo caíra numa fossa intelectual. Optaram por se reger por códigos, mensagens cifradas que utilizam para comunicar somente com aqueles que ainda lutam por emergir da fossa. Camuflados de discordianos, a mãe sempre me ensinou que por trás de todo o caos aparente, os degéniorados escondiam a chave para o futuro.
Quando me sentiu a analisá-lo, os olhos do moribundo fixaram. Reviveu a sua rigidez, a sua inércia e lutou contra ela. O sorriso que esboçou foi o primeiro resultado do seu esforço. Os dentes rangeram, os maxilares estalaram na tentativa de engrenagem. Eu vi como tentou voltar a falar. Ao reconhecer isso apercebi-me que, por mim, o inerte estava a prescindir de um principio que, outrora, se vira forçado a adoptar, o principio de um degéniorado que vive no silêncio, quebrado apenas pelas mensagens ocultas que o fazem pesar.
Tentou novamente a engrenagem. Apercebi-me do encaixe das rodas dentadas, da súplica dos maxilares para abrir a boca. A ferrugem prevaleceu, o processo falhou e os seus olhos cerraram para sempre.
Senti que com ele um segredo se evaporara e foi ao contemplar esse medo que me fixei na placa que trazia ao peito e no sorriso que não largou. Que segredo tão oculto poderia trazer um sorriso rendido à inércia?
Na procura da resposta ganhei 21 gramas de peso...

Do teu, para sempre, irmão.

PS: Eu sempre fui bom com códigos mana, nunca te imaginei foi tão crente. Adorei a subtileza com que chegaste até mim e me fizeste acreditar. Adorei reconhecer que a borboleta és tu, com o teu simples bater de asas, suficiente para criar este vento que me sustém. Não te preocupes mana, só os que emergirem da fossa descobrirão o nosso segredo.

Thursday, April 19, 2007

A crítica da razão pura

Prefácio: Como, quem conta um conto, acrescenta sempre um ponto...

Lisboa, 22 de Março de 2007

Querida mana:

A noite não cai da mesma maneira em minha casa e na tua. Aqui, junto a mim, ela apenas derrama o manto sobre os telhados. As janelas deixam de aceitar o sol, o céu afasta-o, obriga-o a cair no horizonte. O sol em sinal de protesto tinge o céu de vermelho. Acaba por se render ao manto, mas não como cobarde, apenas se retira para recuperar o fôlego. Eu sobre os telhados tenho medo da escuridão mas sei que o sol não me abandonou, eu sei disso...não o podes negar. Eu vejo como ele criou uma legião secreta de pirilampos, altamente qualificada para resistir ao manto. Eu vejo-os sobre o telhado! Como podes dizer que não existem? São tantos! Trespassam o manto escuro da noite e atingem-me com força no peito!
A mãe diz que o pai foi atingido, uma vez, com muita força no peito por uma bala. Disse que ele foi sujeito a tantas que finalmente lhe foi concedida a possibilidade de ir para onde o sol nunca se põe. Eu que sou atingido por muitas durante noite, estou à espera da minha vez! Os pirilampos viajam a uma velocidade tão grande, rasgam o manto e batem num estrondo de luz sobre o meu peito...como me sinto mais vigoroso depois disso.
Não percebo, então, porque dizes que as balas são mortíferas, símbolo de guerra. Que devoram tudo o que encontram sobre o seu eixo de propagação. Em tua casa tudo se passa de maneira diferente, estou a ver.
Numa coisa concordo contigo. A mãe tem chegado tarde a casa. Parece cansada de facto, com olheiras que pintam a cara de um sombrio terrível. As rugas escrevem-lhe histórias na pele e ela diz que todos os dias de manhã se olha ao espelho, lê e decora uma das histórias, só para me fazer adormecer à noite. Na verdade nunca adormeço, fico a ouvi-la chorar, sobre o outro telhado. Acabo por fazê-lo também e sinto-me muito melhor! Sabes, é que a mãe disse que chorar faz bem porque renova as águas no nosso corpo. São as lágrimas que captam a luz do exterior e a devolvem ao nosso interior quando voltam a cair sobre os lábios e as engolimos inadvertidamente.
Aqui mais uma vez me deixas confuso. Nunca percebi porque dizes que choras quando estás triste, que o fazes quando engoles o arrependimento de me teres deixado ao cuidado da mãe. Se chorar renova o nosso interior porque o associas tu à tristeza? Às vezes penso que a tua casa está virada ao contrário.
Ontem, sob o manto, um clarão de luz levou o telhado da casa à minha frente. Tão grande que era, que mesmo eu o vi, apesar de estar debaixo dos lençóis. A mãe acorreu ao meu quarto, estava ainda mais pintada de negro. As olheiras escorriam por debaixo dos olhos e amorteciam sobre as bochechas. Daqui começavam a dar a volta à cabeça formando uma venda negra sobre os olhos. Abraçou-me, beijou-me a testa e atirou-se do meu telhado, lá para baixo, onde se notava o resto do clarão que levara o telhado à minha frente...
A mãe sempre saiu muito cedo de casa. Desta vez nem esperou que o sol ganhasse o seu fôlego e voltasse a reduzir o manto à sombra dos telhados. Nem esperou. Aproveitou o primeiro clarão para se fazer ao trabalho. Não me preocupei. Adormeci seguro que sob os telhados eram contadas mais histórias à minha mãe, seguro de que ela as gravaria nas rugas da sua face e mas contaria mais logo, sob um novo efeito do manto.

Fico contente mana que, na última carta, tenhas finalmente percebido que na minha casa as coisas se passam de maneira diferente. Disseste que foi ao estudar a crítica da razão pura na universidade, e a sua abordagem à existência de verdades subjectivas e não de uma verdade absoluta. Desculpa mana, não posso deixar de dizer que as tuas histórias são mais difíceis de entender. São panelas cheias de palavras esquisitas. Gosto mais das histórias da mãe. Espero que não me leves a mal.

Passo finalmente ao motivo por o qual te escrevo esta carta. É que a mãe, como te disse, saiu tão cedo e ainda não voltou. Como o manto já caiu sobre os telhados, começo agora a estar ansioso por ouvir uma nova história. E a mãe que saiu de olhos vendados, temo que não consiga encontrar o caminho de volta...

Do teu, para sempre, irmão