Thursday, April 26, 2007

A cor IG

Lisboa 26 de Abril de 2007

Querida mana:

Cedo se amedronta uma vida no desgaste de uma ausência, cedo o tempo se encurta aos nossos olhos. Livro-me assim de uma luta como espada rendida à terra, como coragem que vira lebre, como esperança febril que tão cedo me embala e me traz o dia em que serei derrotado.
Não consigo sair do teu enredo, às vezes penso que, nele, ficarei para sempre perdido. Não consegui perceber do que me querias alertar na tua carta sem assunto. Procurei ajuda noutros telhados, outras essências que anseio que se revejam na tua e me deslumbrem com algo mais do que este silêncio surdescente. Cedo me rendo à seniscência, essa coisa perversa que nos mata em segredo, em cada instante de tempo.

Lá em baixo vozes se agitam. Distingo 2 homens vencidos pelo tempo em acesa discussão. Um deles mal se levanta, toda a sua força é empregue para levantar um braço onde se lhe pesa uma borboleta. O que aconteceu à leveza das borboletas, mana? Ao pescoço traz, como qualquer degéniorado, o seu código de identificação: lBntzozykB. O velho rastejante arrasta, ainda, com ele, uma dose de latas enferrujadas que enalam um cheiro a morte. Sim mana, consigo sentir o seu cheiro mesmo aqui no meu telhado. O velho parecia trazer consigo o fim.
O segundo participante na discussão fala por escarras que solta ruidosamente, para alívio da garganta. Parece indiferente à súplica do velho rastejante como se não passassem de silêncios, concentrando-se mais na sua voz de profeta. Parece prometer mundos e fundos e eu começo a sentir nele uma certa esperança. Fala com palavras nunca antes ditas, com certezas nunca antes postas em causa, com verdades absolutas. Fala em pintar as nossas vidas de uma cor que não existe... Entusiasmado solta palavras no vento, profetiza banhos de chuva que nos lavam a alma corpórea, essa alma que agora só se vale do seu peso e não da sua leveza.
Teria descido do telhado e abraçado a causa, não fosse a minha fixação na borboleta que pesava sobre a mão do velho rastejante. De onde vem o peso da borboleta?
Nas latas pinta-se a vermelho Zyklon. É mais um dos teus códigos, mana?
Zyklon é a palavra que designa ciclone em alemão. Borboleta e ciclone, os símbolos da teoria do caos. Porque insistes neles? Por onde me levas mana? Porque sofre o velho rastejante o efeito da borboleta, esse tufão sobre a sua alma que o faz chorar lágrimas ácidas?

No desespero da minha ânsia vejo a cor, aquela cor que não existe e que o figurante, do qual não se esgotam as escarras, insiste em promover. Dentro de mim, cresce um cheiro de cinza, um medo de assombro um vomito imenso. Aquela cor, era cor de morte. Entre o velho rastejante e o figurante heis que se ergue um muro que acaba na sua única entrada, onde se destaca em letras de ferro: "Arbeit macht frei ".
Não!....

Do teu, para sempre, irmão

Monday, April 23, 2007

Odem

Lisboa, 24 de Abril de 2007

Querido mano:

Quem nos promove neste mundo, nos retira o embalo e nos deixa desertos imensos por definir?
Dorme apenas no consolo da minha ausência, no varão de uma escada onde tropeçam segredos, no silêncio dos fracos que se fazem deuses. À noite revê as sombras, procura o enredo, descobre o enlace, espreita por detrás do pano.

Noite crua em que te deitas, que se embaraça na luz e se regozija na sombra da uma alma penosa. Comigo estarias seguro é certo, mas não é comigo que te encontras agora e nada posso fazer a não ser alertar-te. É segredo, aquilo que te deixo, que de tão sorrateiro se incumbe de ajudar aos mais lamentáveis desfechos, mas que nos antecipa finais. Meu irmão, olha em todas as direcções, revê todos os sentidos, anota todos os sinais, é pesado o fardo que te deixo mas é vital antecipares a queda do pano, para que te protejas dos assobios. Segredo, mantém-me em segredo...Mas não me forces ao esquecimento.
Se ao menos pudesse poupar-te do peso que te coloco sobre os ombros, se ao menos nos pudéssemos render à apatia de toda a gente, não me iludo e espero que tu também não. Insistirem na indiferença não lhes valeu de nada, acabaram como intelectos mortos, apodrecidos na cinza das estações. Lhes dirá o tempo, se a árvore volta a dar fruto. Digo não ao caminho, para que possas ser tu a tomar-lhe o rumo.

O tempo, no teu telhado, continua a ser marcado pelo alemão do 12º telhado? Edema generalizado esse que se acumula entre os instantes de tempo que insiste em marcar, e porque na sua graça, cada intervalo entre 2 instantes é maior que o intervalo anterior, o desgraçado acredita que tende para a imortalidade. Mora nesse telhado faz tempo e é o melhor dos exemplos dos que caíram na fossa intelectual. Comigo nunca falou. Mas talvez contigo o faça mesmo que não estejas com ele, mesmo que não o ouças, talvez na origem da sua indiferença involuntariamente permita que eu te segrede ao ouvido.
Só o facto de medir o tempo o torna vazio. O tempo rege-se numa progressão para o infinito, nunca permitirá que alguém o acompanhe eternamente. Edema generalizado esse que consome o contador do tempo que ainda assim traz com ele o meu aviso, em cada começo.

Da tua, para sempre, irmã

Sunday, April 22, 2007

Génese 22

Lisboa, 22 de Abril de 2007

Querida Mana:

Quando te vês ao espelho quem reconheces, o tufão ou a borboleta? A causa ou o efeito?

Só podes ser um tornado, com essa tua indiferença de quem se rege por leis egocêntricas, de quem consome tudo à sua volta e em espiral força tudo a servir o seu propósito interior. Nos últimos dias nada fiz, para além de esperar um regresso teu, ou talvez me bastasse uma resposta tua apenas. Acho que acalentei demasiadas esperanças no teu primeiro abraço e com esse dilúvio de esperança transbordou a revolta.
Perdoa-me, mas dói-me tanto não ter notícias tuas.
Porque não respondeste à minha carta? A mãe continua sem voltar e eu anseio as suas histórias. Onde estás tu?
Estou decidido a saltar do meu telhado, seguir as marcas que a mãe deixou, na sua descida até ao chão, estou convencido que só assim poderei ter notícias dela. Não percebo, então, o porquê do meu corpo não ceder à queda, o porquê desta ausência de peso.
O vento bate-me forte no corpo, gela-me a pele. É ele que me sustém, que me impede de cair do meu telhado e de me tornar mais uma pedra do chão. Podes imaginar o quão leve estou, para que seja o vento a minha única base de sustentação. Podes imaginar mana, o quão vazio me sinto. Sem o teu abraço é certo que vou acabar por voar, planar, é certo que serei a borboleta, que na sua leveza se recusa a cair.
Acabei de perder 21 gramas...
Debaixo do meu telhado, mais 22 telhados. A prova de que a queda seria eterna.
No telhado imediatamente abaixo, um homem padece da doença do ferro, mal se move. O corpo estático há muito que negou as leis do movimento. Os seus olhos, no entanto, deslumbram em todas as direcções, à procura de uma fé há muito esquecida, que o possa ajudar a contrariar o apodrecimento. Preso ao pescoço, apresenta um cartaz onde se diferencia um código de identificação: 918113 datado de 25121642. É um "degéniorado", rapidamente reconheço. A mãe aponta-os como génios que degeneraram em solidão aquando da percepção de que o mundo caíra numa fossa intelectual. Optaram por se reger por códigos, mensagens cifradas que utilizam para comunicar somente com aqueles que ainda lutam por emergir da fossa. Camuflados de discordianos, a mãe sempre me ensinou que por trás de todo o caos aparente, os degéniorados escondiam a chave para o futuro.
Quando me sentiu a analisá-lo, os olhos do moribundo fixaram. Reviveu a sua rigidez, a sua inércia e lutou contra ela. O sorriso que esboçou foi o primeiro resultado do seu esforço. Os dentes rangeram, os maxilares estalaram na tentativa de engrenagem. Eu vi como tentou voltar a falar. Ao reconhecer isso apercebi-me que, por mim, o inerte estava a prescindir de um principio que, outrora, se vira forçado a adoptar, o principio de um degéniorado que vive no silêncio, quebrado apenas pelas mensagens ocultas que o fazem pesar.
Tentou novamente a engrenagem. Apercebi-me do encaixe das rodas dentadas, da súplica dos maxilares para abrir a boca. A ferrugem prevaleceu, o processo falhou e os seus olhos cerraram para sempre.
Senti que com ele um segredo se evaporara e foi ao contemplar esse medo que me fixei na placa que trazia ao peito e no sorriso que não largou. Que segredo tão oculto poderia trazer um sorriso rendido à inércia?
Na procura da resposta ganhei 21 gramas de peso...

Do teu, para sempre, irmão.

PS: Eu sempre fui bom com códigos mana, nunca te imaginei foi tão crente. Adorei a subtileza com que chegaste até mim e me fizeste acreditar. Adorei reconhecer que a borboleta és tu, com o teu simples bater de asas, suficiente para criar este vento que me sustém. Não te preocupes mana, só os que emergirem da fossa descobrirão o nosso segredo.

Thursday, April 19, 2007

A crítica da razão pura

Prefácio: Como, quem conta um conto, acrescenta sempre um ponto...

Lisboa, 22 de Março de 2007

Querida mana:

A noite não cai da mesma maneira em minha casa e na tua. Aqui, junto a mim, ela apenas derrama o manto sobre os telhados. As janelas deixam de aceitar o sol, o céu afasta-o, obriga-o a cair no horizonte. O sol em sinal de protesto tinge o céu de vermelho. Acaba por se render ao manto, mas não como cobarde, apenas se retira para recuperar o fôlego. Eu sobre os telhados tenho medo da escuridão mas sei que o sol não me abandonou, eu sei disso...não o podes negar. Eu vejo como ele criou uma legião secreta de pirilampos, altamente qualificada para resistir ao manto. Eu vejo-os sobre o telhado! Como podes dizer que não existem? São tantos! Trespassam o manto escuro da noite e atingem-me com força no peito!
A mãe diz que o pai foi atingido, uma vez, com muita força no peito por uma bala. Disse que ele foi sujeito a tantas que finalmente lhe foi concedida a possibilidade de ir para onde o sol nunca se põe. Eu que sou atingido por muitas durante noite, estou à espera da minha vez! Os pirilampos viajam a uma velocidade tão grande, rasgam o manto e batem num estrondo de luz sobre o meu peito...como me sinto mais vigoroso depois disso.
Não percebo, então, porque dizes que as balas são mortíferas, símbolo de guerra. Que devoram tudo o que encontram sobre o seu eixo de propagação. Em tua casa tudo se passa de maneira diferente, estou a ver.
Numa coisa concordo contigo. A mãe tem chegado tarde a casa. Parece cansada de facto, com olheiras que pintam a cara de um sombrio terrível. As rugas escrevem-lhe histórias na pele e ela diz que todos os dias de manhã se olha ao espelho, lê e decora uma das histórias, só para me fazer adormecer à noite. Na verdade nunca adormeço, fico a ouvi-la chorar, sobre o outro telhado. Acabo por fazê-lo também e sinto-me muito melhor! Sabes, é que a mãe disse que chorar faz bem porque renova as águas no nosso corpo. São as lágrimas que captam a luz do exterior e a devolvem ao nosso interior quando voltam a cair sobre os lábios e as engolimos inadvertidamente.
Aqui mais uma vez me deixas confuso. Nunca percebi porque dizes que choras quando estás triste, que o fazes quando engoles o arrependimento de me teres deixado ao cuidado da mãe. Se chorar renova o nosso interior porque o associas tu à tristeza? Às vezes penso que a tua casa está virada ao contrário.
Ontem, sob o manto, um clarão de luz levou o telhado da casa à minha frente. Tão grande que era, que mesmo eu o vi, apesar de estar debaixo dos lençóis. A mãe acorreu ao meu quarto, estava ainda mais pintada de negro. As olheiras escorriam por debaixo dos olhos e amorteciam sobre as bochechas. Daqui começavam a dar a volta à cabeça formando uma venda negra sobre os olhos. Abraçou-me, beijou-me a testa e atirou-se do meu telhado, lá para baixo, onde se notava o resto do clarão que levara o telhado à minha frente...
A mãe sempre saiu muito cedo de casa. Desta vez nem esperou que o sol ganhasse o seu fôlego e voltasse a reduzir o manto à sombra dos telhados. Nem esperou. Aproveitou o primeiro clarão para se fazer ao trabalho. Não me preocupei. Adormeci seguro que sob os telhados eram contadas mais histórias à minha mãe, seguro de que ela as gravaria nas rugas da sua face e mas contaria mais logo, sob um novo efeito do manto.

Fico contente mana que, na última carta, tenhas finalmente percebido que na minha casa as coisas se passam de maneira diferente. Disseste que foi ao estudar a crítica da razão pura na universidade, e a sua abordagem à existência de verdades subjectivas e não de uma verdade absoluta. Desculpa mana, não posso deixar de dizer que as tuas histórias são mais difíceis de entender. São panelas cheias de palavras esquisitas. Gosto mais das histórias da mãe. Espero que não me leves a mal.

Passo finalmente ao motivo por o qual te escrevo esta carta. É que a mãe, como te disse, saiu tão cedo e ainda não voltou. Como o manto já caiu sobre os telhados, começo agora a estar ansioso por ouvir uma nova história. E a mãe que saiu de olhos vendados, temo que não consiga encontrar o caminho de volta...

Do teu, para sempre, irmão