Sunday, April 22, 2007

Génese 22

Lisboa, 22 de Abril de 2007

Querida Mana:

Quando te vês ao espelho quem reconheces, o tufão ou a borboleta? A causa ou o efeito?

Só podes ser um tornado, com essa tua indiferença de quem se rege por leis egocêntricas, de quem consome tudo à sua volta e em espiral força tudo a servir o seu propósito interior. Nos últimos dias nada fiz, para além de esperar um regresso teu, ou talvez me bastasse uma resposta tua apenas. Acho que acalentei demasiadas esperanças no teu primeiro abraço e com esse dilúvio de esperança transbordou a revolta.
Perdoa-me, mas dói-me tanto não ter notícias tuas.
Porque não respondeste à minha carta? A mãe continua sem voltar e eu anseio as suas histórias. Onde estás tu?
Estou decidido a saltar do meu telhado, seguir as marcas que a mãe deixou, na sua descida até ao chão, estou convencido que só assim poderei ter notícias dela. Não percebo, então, o porquê do meu corpo não ceder à queda, o porquê desta ausência de peso.
O vento bate-me forte no corpo, gela-me a pele. É ele que me sustém, que me impede de cair do meu telhado e de me tornar mais uma pedra do chão. Podes imaginar o quão leve estou, para que seja o vento a minha única base de sustentação. Podes imaginar mana, o quão vazio me sinto. Sem o teu abraço é certo que vou acabar por voar, planar, é certo que serei a borboleta, que na sua leveza se recusa a cair.
Acabei de perder 21 gramas...
Debaixo do meu telhado, mais 22 telhados. A prova de que a queda seria eterna.
No telhado imediatamente abaixo, um homem padece da doença do ferro, mal se move. O corpo estático há muito que negou as leis do movimento. Os seus olhos, no entanto, deslumbram em todas as direcções, à procura de uma fé há muito esquecida, que o possa ajudar a contrariar o apodrecimento. Preso ao pescoço, apresenta um cartaz onde se diferencia um código de identificação: 918113 datado de 25121642. É um "degéniorado", rapidamente reconheço. A mãe aponta-os como génios que degeneraram em solidão aquando da percepção de que o mundo caíra numa fossa intelectual. Optaram por se reger por códigos, mensagens cifradas que utilizam para comunicar somente com aqueles que ainda lutam por emergir da fossa. Camuflados de discordianos, a mãe sempre me ensinou que por trás de todo o caos aparente, os degéniorados escondiam a chave para o futuro.
Quando me sentiu a analisá-lo, os olhos do moribundo fixaram. Reviveu a sua rigidez, a sua inércia e lutou contra ela. O sorriso que esboçou foi o primeiro resultado do seu esforço. Os dentes rangeram, os maxilares estalaram na tentativa de engrenagem. Eu vi como tentou voltar a falar. Ao reconhecer isso apercebi-me que, por mim, o inerte estava a prescindir de um principio que, outrora, se vira forçado a adoptar, o principio de um degéniorado que vive no silêncio, quebrado apenas pelas mensagens ocultas que o fazem pesar.
Tentou novamente a engrenagem. Apercebi-me do encaixe das rodas dentadas, da súplica dos maxilares para abrir a boca. A ferrugem prevaleceu, o processo falhou e os seus olhos cerraram para sempre.
Senti que com ele um segredo se evaporara e foi ao contemplar esse medo que me fixei na placa que trazia ao peito e no sorriso que não largou. Que segredo tão oculto poderia trazer um sorriso rendido à inércia?
Na procura da resposta ganhei 21 gramas de peso...

Do teu, para sempre, irmão.

PS: Eu sempre fui bom com códigos mana, nunca te imaginei foi tão crente. Adorei a subtileza com que chegaste até mim e me fizeste acreditar. Adorei reconhecer que a borboleta és tu, com o teu simples bater de asas, suficiente para criar este vento que me sustém. Não te preocupes mana, só os que emergirem da fossa descobrirão o nosso segredo.

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