Thursday, April 19, 2007

A crítica da razão pura

Prefácio: Como, quem conta um conto, acrescenta sempre um ponto...

Lisboa, 22 de Março de 2007

Querida mana:

A noite não cai da mesma maneira em minha casa e na tua. Aqui, junto a mim, ela apenas derrama o manto sobre os telhados. As janelas deixam de aceitar o sol, o céu afasta-o, obriga-o a cair no horizonte. O sol em sinal de protesto tinge o céu de vermelho. Acaba por se render ao manto, mas não como cobarde, apenas se retira para recuperar o fôlego. Eu sobre os telhados tenho medo da escuridão mas sei que o sol não me abandonou, eu sei disso...não o podes negar. Eu vejo como ele criou uma legião secreta de pirilampos, altamente qualificada para resistir ao manto. Eu vejo-os sobre o telhado! Como podes dizer que não existem? São tantos! Trespassam o manto escuro da noite e atingem-me com força no peito!
A mãe diz que o pai foi atingido, uma vez, com muita força no peito por uma bala. Disse que ele foi sujeito a tantas que finalmente lhe foi concedida a possibilidade de ir para onde o sol nunca se põe. Eu que sou atingido por muitas durante noite, estou à espera da minha vez! Os pirilampos viajam a uma velocidade tão grande, rasgam o manto e batem num estrondo de luz sobre o meu peito...como me sinto mais vigoroso depois disso.
Não percebo, então, porque dizes que as balas são mortíferas, símbolo de guerra. Que devoram tudo o que encontram sobre o seu eixo de propagação. Em tua casa tudo se passa de maneira diferente, estou a ver.
Numa coisa concordo contigo. A mãe tem chegado tarde a casa. Parece cansada de facto, com olheiras que pintam a cara de um sombrio terrível. As rugas escrevem-lhe histórias na pele e ela diz que todos os dias de manhã se olha ao espelho, lê e decora uma das histórias, só para me fazer adormecer à noite. Na verdade nunca adormeço, fico a ouvi-la chorar, sobre o outro telhado. Acabo por fazê-lo também e sinto-me muito melhor! Sabes, é que a mãe disse que chorar faz bem porque renova as águas no nosso corpo. São as lágrimas que captam a luz do exterior e a devolvem ao nosso interior quando voltam a cair sobre os lábios e as engolimos inadvertidamente.
Aqui mais uma vez me deixas confuso. Nunca percebi porque dizes que choras quando estás triste, que o fazes quando engoles o arrependimento de me teres deixado ao cuidado da mãe. Se chorar renova o nosso interior porque o associas tu à tristeza? Às vezes penso que a tua casa está virada ao contrário.
Ontem, sob o manto, um clarão de luz levou o telhado da casa à minha frente. Tão grande que era, que mesmo eu o vi, apesar de estar debaixo dos lençóis. A mãe acorreu ao meu quarto, estava ainda mais pintada de negro. As olheiras escorriam por debaixo dos olhos e amorteciam sobre as bochechas. Daqui começavam a dar a volta à cabeça formando uma venda negra sobre os olhos. Abraçou-me, beijou-me a testa e atirou-se do meu telhado, lá para baixo, onde se notava o resto do clarão que levara o telhado à minha frente...
A mãe sempre saiu muito cedo de casa. Desta vez nem esperou que o sol ganhasse o seu fôlego e voltasse a reduzir o manto à sombra dos telhados. Nem esperou. Aproveitou o primeiro clarão para se fazer ao trabalho. Não me preocupei. Adormeci seguro que sob os telhados eram contadas mais histórias à minha mãe, seguro de que ela as gravaria nas rugas da sua face e mas contaria mais logo, sob um novo efeito do manto.

Fico contente mana que, na última carta, tenhas finalmente percebido que na minha casa as coisas se passam de maneira diferente. Disseste que foi ao estudar a crítica da razão pura na universidade, e a sua abordagem à existência de verdades subjectivas e não de uma verdade absoluta. Desculpa mana, não posso deixar de dizer que as tuas histórias são mais difíceis de entender. São panelas cheias de palavras esquisitas. Gosto mais das histórias da mãe. Espero que não me leves a mal.

Passo finalmente ao motivo por o qual te escrevo esta carta. É que a mãe, como te disse, saiu tão cedo e ainda não voltou. Como o manto já caiu sobre os telhados, começo agora a estar ansioso por ouvir uma nova história. E a mãe que saiu de olhos vendados, temo que não consiga encontrar o caminho de volta...

Do teu, para sempre, irmão

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