Thursday, April 3, 2008

A vida, o sonho e o acordar

Querida mana:

Porque andar ao sabor do vento não me faz esquecer de ti, sou amanhã somente o que sou hoje, para que nenhuma nova lembrança se sobreponha ao resto que guardo de ti, em mim.
De tão só a que me dispus fiz de mim uma espiral, deixei-me arrastar ao meu próprio âmago, sem sequer pensar que tu mana, pudesses também estar a sofrer com tudo o que foi desencadeado, como um cavaleiro, rendido ao seu próprio reflexo na espada. Mas não há sombra sem luz mana e as brechas dos muros que se ergueram entre nós não deixaram de ser estradas para nós.


Hoje vi terminado o deserto. Cheguei a um terreno vadio, onde a única essência que se fixou foram as ruínas das paredes que outrora sustentavam o tecto do mundo, que uma vez caído viu perdido todo o seu significado. O terreno chorava sobre os meus pés, criando riachos embalados entre despojos abandonados que não subiram ao céu, tal era o peso das lembranças que acarretavam. Ao fundo um cavalo de pau baloiçava ainda, contrapondo a esperança das memórias com o peso de um choro. Perto dele uma espécie de espírito andante, do qual ainda se ouviam os passos a ressoar nos destroços, remexia no seu tanto que aparentava ser vazio. Uma alma. É ela que deslumbro agora enquanto te escrevo. A sua transparência é tal que ficamos com a sensação que a conhecemos desde sempre. Esta não partiu, ainda mora no mesmo pedaço em que nasceu, talvez por isso se sinta amarrada a este lugar e lhe dedique tanto do seu tempo infinito.

Perguntei como se chamava, mas o som atravessou-a sem encontrar qualquer barreira e deixou-se estar no seu modo desvanecente.

No teu mundo existem almas mana?

Ouvi antes falar delas, num qualquer livro lido entre uma mãe que embala um filho e uns olhos a fechar. Sei que imaginei como seriam, brilhantes talvez, ofuscando-nos o seu interior, imaginei-as como pétalas de uma flor que se soltam no vento, como uma chuva mágica de pirilampos, daquelas que se vêm aquando da queda do manto. Estou certo que, de todas as aventuras que me contou, as que envolviam almas foram de todo, mana, aquelas que mais me abraçaram. Podes não acreditar, mas a alma que vejo a pairar, num ir e vir, transcendeu tudo o que imaginei..

Estou a pensar em assentar o corpo e esperar por ti, esperar até que o mundo entre nós tenha a distância de um abraço. Entretanto tratarei de chorar sobre riachos, fazer deles rios, de rios mares e oceanos que levem as nossas caravelas ao mesmo porto. Sim mana, porque hoje não vou chorar por não te ver, vou chorar para que a tua rota te traga de encontro a mim.

No silencio dos passos da alma deixo-me embalar e no meu esperar fixo-me na sua transparência. É difícil segui-la de olhos abertos, mais fácil fica fazê-lo de olhos fechados porque ela ressoa no peito, não reflecte qualquer luz. As ruínas também elas se acomodam, acolhem as mágoas dos despojos espalhados, cobrem-se de musgo a dar cheiro e cor. As borboletas voam num principio de incerteza, sussurram sobre as desventuras que levaram uma casa a tornar-se num cemitério de memórias. E eu que sempre os receei faço agora deste o meu porto de abrigo. Inspiro o mundo que me rodeia, para bem fundo, deixo-o correr e espalhar a novidade a todos os cantos da minha forma. Porque é assim que eu me lembro das coisas, com o mundo a correr nos meus pulmões mais perto do coração. E só o que fica no coração pode ser para sempre lembrado, ou pelo aperto que causa ou pelo sorriso que se forma. É neste vento de emoções que te lembro, esperando que a sua força me assole e me preencha por completo.

Por onde andarás mana, preciso que mais uma vez a tua sabedoria me ralhe, me incuta lições e que me faça acordar para todos os meus erros cometidos.
A chuva começa a cair, trazendo novas estações imersas em mil águas. Em breve plantarei a árvore de Maio para a celebração da tua chegada até mim. Assim te quero... Por ora deixo que o terreno se molhe, se deixe fertilizar na nossa saudade mas depois as gotas ressaltarão em mim, descerão até ao chão e alimentarão os riachos. Os rios se tornarão mares e os despojos serão engolidos pelo oceano do esquecimento e para sempre perdidos. As ruínas que suportam o meu corpo formarão a jangada de pedra a caminho do teu horizonte longínquo e com a força de um oceano não haverá barco algum que encalhe entre a tua Lisboa e a minha Índia.

E assim me cresço, para não mais ser um fardo para ti. Assim me crescem os braços e os torno mais fortes. E a minha pele, que perdeu a suavidade que tinha, assim se torna a minha armadura de papel. Os meus cabelos que secam desfiguram-me num espantalho de remendos a afugentar a dor das feridas que me tornaram homem. Não mais deixarei reger a minha vida sobre a tua protecção. Talvez de hoje em diante passe a ser o teu irmão mais velho e tu a minha protegida, para que não te distraias do caminho que te leva de encontro a mim.

Eu sei que nunca o irias consentir, sei que para ti sempre serei o teu mano mais novo, mas não podes esperar que depois de atravessar um deserto olhe para trás e me veja como a mesma criança que sempre fui. Nunca mais a serei porque falta dentro de mim o calor do teu abraço e uma história ao deitar... Sem ela sou somente hoje o que fui ontem, sem histórias para contar.

Serei o teu cavaleiro de armadura inquebrável ao lado do espírito andante, companheiro leal, heróis destemidos, destinados a vencer a maior das batalhas, Aquiles e Heitor, seremos Gregos e Troianos, Espartanos, levantaremos as espadas forjadas em honra, ergueremos o seu peso como se do nosso se tratasse. Poderá alguém nos quebrar a coragem? Que se atrevam!!! Porque eu farei tudo para proteger o teu caminho, para garantir cada quilómetro. Serei o fim do teu percurso, o teu irmão mais velho, o fim do teu medo de me perder, o cavaleiro que que se insurge porque nunca antes alguém o inventou. Podes caminhar segura, vir de onde quer que te encontres com um passo após outro, sem nunca mais chorar, nunca mais olhar para trás, nunca mais... E quando as gotas da chuva também em ti ressaltarem como fazem no meu ombro, saberás que o meu esforço é o teu esforço e que em breve as gotas saltarão de mim para ti, e de ti para mim, num abraço profundo...

Peguntei à alma se estava do meu lado. Mais uma vez o seu reflexo foi nulo mas o ressoar no peito ensurdecedor.


Se algum dia cair em batalha pois então que o faça em orgulho e me deite na cama que o mundo me fez. Sabes mana, não mais terei medo da morte, não mais me assustarei como sempre acontecia quando a mãe me contava sobre o fim, quando me explicava todo esse processo de desligar um corpo e libertar uma alma. Nunca percebi a razão de o fazer, se onde quer que estejamos não deixamos de ser quem sempre fomos. Aí ou aqui onde estou...

Mas...

Se assim é, como poderei ser eu o teu mano mais velho se sempre fui o teu mano mais novo?

(suspiro)

Deixa estar mana, também nunca acreditei em todos as histórias que a mãe me contou. Mais cedo ou mais tarde teria de acordar do sono profundo em que ela me embalou...

Do teu, para sempre, irmão.

1 comment:

De dentro pra fora said...

Os laços de amor são eternos ...como só o eterno sabe ser..as almas, mais tarde ou mais cedo se encontram..para o abraço, cheio de amor, e para sempre eterno...